quinta-feira, 4 de junho de 2015

"QUANDO O CORPO FALA : UMA AULA DE TEATRO VISCERAL"


Sala totalmente escura. Deitado no palco... Ao meu lado muitos corpos imóveis. De repente uma música instrumental começa a tocar e gradativamente seu som se eleva, até que não conseguimos mais ouvir a respiração do colega que está ao nosso lado de tão alta. A música? Coincidentemente ou não, é uma das que fazem parte da trilha sonora da minha vida: “Viva la vida”, unicamente interpretada por uma banda que amo de paixão, Coldplay.

A porta... eu e porta...Nós e a porta....

A porta da libertação. Das amarras. Na semana passada, na aula de técnicas corporais, com o sensacional professor Jefter Paulo, resolvi deixar parte da minha racionalidade de lado e tentar, de fato, entrar nesse mundo que alimentei por anos em meus sonhos: o teatro. Afinal, para que me propus em estar ali? Para que passar por um processo seletivo depois de 35 anos de idade e uma vida profissional e financeira que posso considerar estável? Para simplesmente estudar uma ciência que amo e me privei por tanto tempo e por muitos motivos: dinheiro, vergonha, razão. E se não me entregasse no aprofundamento desse estudo, de que valeria essa experiência? A proposta era escrever em um pedaço de papel, algo que sentíssemos nojo em nós mesmos. A maior vergonha que tivéssemos dentro de nós. Ferir o músculo e deixar aparecer o bulbo do osso. Essas foram as palavras do professor. E então escrevi algo naquele papel que nem nos meus momentos de confissão, ao padre, tive coragem de fazê-lo. “Ação e reação”. A segunda atividade consistia em deixar o nosso corpo falar com uma atitude não ensaiada e estar pronto para qualquer reação do colega. E até agora, ainda, não entendi porque resolvi ter aquela ação. Ou melhor, eu sei sim. Queria chocar. Queria marcar minha presença ali. Fui questionado imediatamente pela outra professora, não menos sensacional, Luana Vitor, sobre o que me levou àquilo. Não soube responder ao certo. Ou neguei a mim mesmo o que acabei de confessar. Sim, a verdade é que eu queria, sim, chocar. Embora um dos coordenadores do curso, tenha dito na aula inaugural, que ali não era um lugar para terapia, foi disso que me serviu. Estou me conhecendo, como humano, perfeito à imagem de Deus e também, contraditoriamente, falho. Eu não quero ser apontado, mas aponto. Eu não quero ser julgado, mas julgo. Não gosto que me enganem, mas tentei enganar a todos e a mim mesmo com aquela justificativa pouco convincente. A porta...

“Eu sempre abri a porta, de qualquer jeito, não tinha consciência. Sem a chave...”

Mas voltando à aula de ontem. No anfiteatro escuro, não era aula de corpo, mas foi uma aula visceral. O professor era outro. E aos poucos vou percebendo o peso da palavra “monstro” tanto utilizada por ele para se referir respeitosamente aos seus colegas e justamente com ele percebo o que é ser um monstro no que se faz: Ricardo Andrade Vassillievitch. As carnes aos poucos começaram a ser abertas. Rasga-se a pele. Os músculos. Resisto em ultrapassar as barreiras e não quero permitir que o meu bulbo ósseo apareça, como o professor Jefter havia proposto. Já havia escrito no papel e ninguém precisava saber qual era o meu pedaço apodrecido. E talvez não irá. Criei coragem para olhá-lo e tentar mudá-lo. Sim, está sendo uma terapia. Também. O trilhar de um caminho que preciso concluir. Mesmo diante de tantas adversidades que vem se colocando ao longo dessa estrada. Nesse caminho está ela: a porta...eu e a porta...

“Agora faço com jeito... com destreza... Penso... Determino... Visualizo... Oro... Transcendo... Teatralizo... Exausto... Ahh...”

Percebi, agora e de verdade, que lá é outro mundo sabe? Ou pelo menos tem que ser. As pessoas não começam a rir da sua cara porque a sua roupa é diferente ou porque você não consegue ter o padrão que todos querem que você tenha... Ou pelo menos não devem fazê-lo. E você faz amizade sem perceber. E sem querer. Tenho minhas convicções, políticas, sociais e religiosas. Vou continuar defendendo o que acredito. Não preciso e não vou deixar tudo para trás por meus ideais. São coisas completamente distintas. Aliás, na contradição desse processo de autoconhecimento, um dos meus ideais é justamente o teatro. Que venham os desafios. Que eu me imponha, respeitando os outros. E que exija que me respeitem também. E que eu abrace. Abrace muito forte. E que eu não tenha vergonha. Que chore. Que me doe. Que me permita. E que abra meu coração para receber esses novos amigos e essas novas experiências. E que o teatro se apodere de mim e me faça ser, um dia, quem sabe, ator. De verdade. Aquele que sabe separar o personagem da vida real. Afinal, é por isso que estou na escola de teatro não é mesmo? Representar e sentir. Contradizer-me. E ao fechar das cortinas, ao retirar a maquiagem e depois dos aplausos, voltar a ser eu mesmo. E levar minha mensagem com o coração aos corações.

Pego minhas coisas, arrumo minha mochila. Despeço-me com um beijo e um abraço nos meus colegas. Digo um até logo. As luzes se apagam. O silêncio agora é para o descanso e a reflexão. Caminho em direção à minha casa. Deito na minha cama. Fecho os olhos e meu pensamento se remete àquele texto...

“Eu quero o aqui, o agora...
Acho que alguém vai entrar por aquela porta...
Está entrando, vamos ver no que vai dar.”

(*) os fragmentos em itálico fazem parte do texto “A porta”, Vassillievitch, Ricardo Andrade, julho/2007.