Sala totalmente escura. Deitado no palco... Ao meu lado muitos
corpos imóveis. De repente uma música instrumental começa a tocar e
gradativamente seu som se eleva, até que não conseguimos mais ouvir a
respiração do colega que está ao nosso lado de tão alta. A música? Coincidentemente
ou não, é uma das que fazem parte da trilha sonora da minha vida: “Viva la vida”,
unicamente interpretada por uma banda que amo de paixão, Coldplay.
A porta... eu e porta...Nós e a porta....
A porta da libertação. Das amarras. Na semana passada, na aula
de técnicas corporais, com o sensacional professor Jefter Paulo, resolvi deixar
parte da minha racionalidade de lado e tentar, de fato, entrar nesse mundo que
alimentei por anos em meus sonhos: o teatro. Afinal, para que me propus em
estar ali? Para que passar por um processo seletivo depois de 35 anos de idade
e uma vida profissional e financeira que posso considerar estável? Para
simplesmente estudar uma ciência que amo e me privei por tanto tempo e por muitos
motivos: dinheiro, vergonha, razão. E se não me entregasse no aprofundamento
desse estudo, de que valeria essa experiência? A proposta era escrever em um
pedaço de papel, algo que sentíssemos nojo em nós mesmos. A maior
vergonha que tivéssemos dentro de nós. Ferir o músculo e deixar aparecer o bulbo do
osso. Essas foram as palavras do professor. E então escrevi algo naquele papel
que nem nos meus momentos de confissão, ao padre, tive coragem de fazê-lo. “Ação
e reação”. A segunda atividade consistia em deixar o nosso corpo falar com uma
atitude não ensaiada e estar pronto para qualquer reação do colega. E até agora,
ainda, não entendi porque resolvi ter aquela ação. Ou melhor, eu sei sim.
Queria chocar. Queria marcar minha presença ali. Fui questionado imediatamente
pela outra professora, não menos sensacional, Luana Vitor, sobre o que me levou
àquilo. Não soube responder ao certo. Ou neguei a mim mesmo o que acabei de
confessar. Sim, a verdade é que eu queria, sim, chocar. Embora um dos
coordenadores do curso, tenha dito na aula inaugural, que ali não era um lugar
para terapia, foi disso que me serviu. Estou me conhecendo, como humano, perfeito à imagem de Deus e também, contraditoriamente, falho. Eu não quero ser
apontado, mas aponto. Eu não quero ser julgado, mas julgo. Não gosto que me
enganem, mas tentei enganar a todos e a mim mesmo com aquela justificativa
pouco convincente. A porta...
“Eu sempre
abri a porta, de qualquer jeito, não tinha consciência. Sem a chave...”
Mas voltando à aula de ontem. No anfiteatro escuro, não era aula
de corpo, mas foi uma aula visceral. O professor era outro. E aos poucos vou
percebendo o peso da palavra “monstro” tanto utilizada por ele para se referir
respeitosamente aos seus colegas e justamente com ele percebo o que é ser um
monstro no que se faz: Ricardo Andrade Vassillievitch. As carnes aos poucos
começaram a ser abertas. Rasga-se a pele. Os músculos. Resisto em ultrapassar
as barreiras e não quero permitir que o meu bulbo ósseo apareça, como o
professor Jefter havia proposto. Já havia escrito no papel e ninguém precisava
saber qual era o meu pedaço apodrecido. E talvez não irá. Criei coragem para
olhá-lo e tentar mudá-lo. Sim, está sendo uma terapia. Também. O trilhar de um
caminho que preciso concluir. Mesmo diante de tantas adversidades que vem se
colocando ao longo dessa estrada. Nesse caminho está ela: a porta...eu e a porta...
“Agora faço
com jeito... com destreza... Penso... Determino... Visualizo... Oro... Transcendo...
Teatralizo... Exausto... Ahh...”
Percebi, agora e de verdade, que lá é outro mundo sabe? Ou pelo
menos tem que ser. As pessoas não começam a rir da sua cara porque a sua roupa
é diferente ou porque você não consegue ter o padrão que todos querem que você
tenha... Ou pelo menos não devem fazê-lo. E você faz amizade sem perceber. E sem
querer. Tenho minhas convicções, políticas, sociais e religiosas. Vou continuar
defendendo o que acredito. Não preciso e não vou deixar tudo para trás por meus
ideais. São coisas completamente distintas. Aliás, na contradição desse processo de autoconhecimento, um dos meus
ideais é justamente o teatro. Que venham os desafios. Que eu me imponha,
respeitando os outros. E que exija que me respeitem também. E que eu abrace. Abrace
muito forte. E que eu não tenha vergonha. Que chore. Que me doe. Que me
permita. E que abra meu coração para receber esses novos amigos e essas novas
experiências. E que o teatro se apodere de mim e me faça ser, um dia, quem sabe,
ator. De verdade. Aquele que sabe separar o personagem da vida real. Afinal, é
por isso que estou na escola de teatro não é mesmo? Representar e sentir.
Contradizer-me. E ao fechar das cortinas, ao retirar a maquiagem e depois dos
aplausos, voltar a ser eu mesmo. E levar minha mensagem com o coração aos corações.
Pego minhas coisas, arrumo minha mochila. Despeço-me com um
beijo e um abraço nos meus colegas. Digo um até logo. As luzes se apagam. O silêncio
agora é para o descanso e a reflexão. Caminho em direção à minha casa. Deito na
minha cama. Fecho os olhos e meu pensamento se remete àquele texto...
“Eu quero o
aqui, o agora...
Acho que
alguém vai entrar por aquela porta...
Está entrando,
vamos ver no que vai dar.”